Autor: Mario Bellatin
Tradutor: Antônio Carlos Santos
Edição limitada – 100 exemplares numerados
88 páginas | 14x21cm | pólen soft 80g
"Carta sobre os cegos... define-se dentro do Moroa Monogatari, tradição japonesa de narrativas contadas por um deficiente. Aqui os protagonistas são, nas palavras da narradora traduzidas por Antonio Carlos Santos para a Cultura e Barbárie, “um par de irmãos, cegos e surdos, abandonados por nossos pais e reclusos num pavilhão clandestino da Colônia de Alienados Etchepare, onde seguimos um curso de escrita ministrado por um professor que se diz escritor”. Quer dizer, com a ajuda de um computador pendurado no pescoço, uma cega e surda parcial conta a seu irmão o que acontece num sanatório mental durante uma aula de escrita criativa ministrada por um escritor medíocre. Esse professor é maneta (como Bellatin) e tem um gosto mórbido e humorístico por desviar do assunto.
À diferença de outros textos mais elípticos de Bellatin, Carta sobre os cegos... se sustenta no fluxo de consciência de uma narradora à la Beckett, às vezes com as previsíveis costuras desse tipo de textos que abusam da repetição de motivos temáticos com fins rítmicos. Esses motivos são a história dos cães selvagens que cercam o sanatório, um navio à deriva que ficcionaliza o relacionamento incestuoso dos irmãos, o assassinato de cães decretado por Maomé e a salvação de Lailahilalá, novamente uma figura sacrificial. Tudo isso somado às já mencionadas digressões do professor de escrita que assinalam a pertinência da poética da própria novela.
Mas, cabe perguntar, estamos diante de um novo experimento autobiográfico, a história de Bellatin narrada por uma cega parcialmente surda a seu irmão surdo e cego? Seria vão identificar o personagem do professor com o autor; ou talvez não tão vão, mas sim frustrante, pois o principal achado dessa Carta vai além do tópico metapoético: a relação originada no romance entre os irmãos e o professor é o vínculo entre o autor e o criado, com a sorte de ser a obra aquilo que atribui ao autor sua entidade fictícia, seu cárcere de palavras.
Carta sobre os cegos para o uso dos que veem toma seu título e voo de um dos textos mais conhecidos de Diderot. O impulsionador da Enciclopédia imaginou um filosofo cego e surdo que percebesse o mundo com as pontas dos dedos. Isso foi útil para pôr sob suspeita o predomínio de uma razão cartesiana, autossuficiente, e de uma ordem moral fundada no sentido da visão. Também Bellatin parece se perguntar: é confiável uma narradora cega e parcialmente surda?, seu mundo deficientemente objetivo vale o mesmo do que o nosso? “Sei que você está consciente de que até invento temas, intervenções, diálogos que nunca ocorreram”, escreve ela a seu irmão, e arremata: “O importante é você não se sentir fora do mundo”. Onde fica, pois, a veracidade? Poderia responder a isso o próprio “senhor” de Jacques, o fatalista: “E o que importa desde que você fale e eu escute? Não são esses os dois pontos importantes?”.
Bellatin professa uma fé na imaginação criadora de realidades e na sua estrutura dialógica, inacabada. Pensemos na sua obra como um grande salão de espelhos dispostos em lugares insólitos: uns deformam e outros devolvem um reflexo revelador e asséptico. As imagens se cruzam e, no centro do salão, uma única figura registra e se multiplica até o absurdo: é o próprio Bellatin ou, melhor dizendo, um personagem de ficção que se sacrifica enquanto começa a se construir como narrativa."
[Carlos Prado – El País]
Carta sobre os cegos para uso dos que veem | Mario Bellatin
TEMPORARIAMENTE FORA DE ESTOQUE